Abandono
Olhavam-se, eles, como se conhecessem, todos, uns os segredos dos outros, mas não se encaravam, não havia entrechoque de olhares, bastava-lhes o tangenciar das suas precauções. O triste de observar era que aquelas notas, talvez notas fantásticas, provindas dos dedos tão habilidosos do homem curvo que sentado ao piano tentava esquecer que aquela madrugada era, provavelmente, a mais escura de sua amorfa existência, não tocavam aquelas almas, tão alheias que estavam à música.
Música é sonho, e embora todos ali parecessem dormir a letargia de um sono catastrófico, eles não sonhavam. Agiam, todos, como se fossem objetos refratários ao calor intenso de notas. Menos o pianista. A música fazia pouco ou nenhum sentido dentro daqueles ouvidos. Dentro deles, por dentro daqueles homens de olhares apagados, imperava um vazio, um vazio profundo, vivo, pulsante, onde aquelas notas, libertadas ao ar pelas mãos de tão desenvolto e anônimo solista, não se propagavam, não se perpetuavam, não encontravam ressonância. Uma madrugada inteira de desencontros. Corações, desejos, esperanças: tudo perdido entre copos de vinho e desistências. Estilhaços diáfanos de vida.
Passaram-se as horas e aqueles homens com seus passos largos, descalços que estavam na vida, aos poucos desapareceram por caminhos onde também não se cruzariam.
O piano tocou por mais um par de horas até que silenciou devagar, nota a nota. Senti uma mão sutil pousar sobre meu ombro direito, a mão quente e habilidosa do homem curvo que outrora estava ao piano, o solista, que agora tentava avisar-me que também eu teria de partir. Foi então que despertei do sono vão. O quarto estava inteiramente revirado, a janela estava ainda aberta e a luz morna dos raios de sol daquela manhã de maio banhava meu corpo nu que jazia ainda aos pés da cama, farto de uma noite de abandono, desperdícios e devaneios diversos, despido, todo ele, de qualquer espécie de vontade, perdido entre os sons e os silêncios daquela manhã leitosa.