O Laparoso
Quando intentou viver, poeira demais já se encontrava acumulada em suas dobras. Poeira do tempo, represada pela inércia. Esticou-se na tentativa de livrar-se do excesso, mas o corpo reclamou: quilos e quilos de adiposidade retinham-no. A poeira opaca e mal cheirosa resistia com bravura em resvalar de dobras tão perenes e vultosas, arrisco-me até a dizer, vetustas. Moveu-se. Não com pouca dificuldade: passo a passo a passo. Passados minutos, a penumbra da cozinha já encobria suas vergonhas. O ar seco eriçou-lhe os pêlos, todos de uma vez. Estava nu. Na boca, o gosto amarelo dos dias perdidos dormia de maneira aparentemente irremediável. Ser-lhe-ia imperioso relutar. O cair da noite trazia-lhe a cegueira necessária para desaparecer, não, contudo, para esquecer-se de si.
Tateou em meio à escuridão e por fim encontrou o puxador. A mobília despedaçava-se aos poucos e completava o caos do ambiente. O odor do mofo secular que decorava as paredes verdescurecidas, subiu-lhe às narinas: vertigem. Segurou com firmeza a gaveta e dela retirou, por fim, um remédio. Talvez o único. Segurou com firmeza a metade de madeira do objeto e a outra, pontiaguda, tratou de usar com precisão. Golpes certeiros e a faca, levada a todos os sítios daquele corpanzil, limou toda carne grossa que comprometia sua estrutura. Pedaço por pedaço. Em algumas horas estava livre do excesso por anos carregado. Sentia-se leve.
O resto da noite passou dentro de uma banheira especialmente preparada no dia anterior: ervas finas, sais nutritivos, sal marinho, algas cicatrizantes e toda sorte de poções, soluções e patuás que conseguira encontrar na feira das Folhas Frescas e que prometiam rejuvenescimento e vida longa. Do banho mágico despertou lá pelo meio da manhã. No corpo, a despeito do tratamento estético-suicida, nenhuma marca ou cicatriz, nenhum machucado. Sentiu-se renovado. Colocou sua melhor roupa, um conjunto de seda e tricoline comprado há mais de vinte anos, e saiu para aproveitar o resto do dia. Queria ser visto, sentir novamente olhares em sua direção sem aquele misto de pena e repulsa.
Na rua tentou, de todas as maneiras, ser serelepe, para agradar ou atrair para si alguma atenção. Sem efeito. Não importava onde fosse, com que jeito se mostrasse. Ninguém o notava. Depois de horas de tanta desdita, a praça pareceu-lhe o melhor lugar para continuar a praticar suas técnicas para ser gostado: trazia ainda uma última carta à manga. Acorreu a um canto não procurado por quem ali já se encontrava, sentou-se e deixou despencar sobre si um fim de tarde cheio de ruídos. O cheiro úmido das flores várias no canteiro mais próximo trouxe-lhe um gosto de devaneio azedo, vontades esmagadas num turbilhão irrefreável de ressentimentos urdidos no contrabalancear dos tempos do início de seu declínio pessoal e intransferível.
Sacou, então, do bolso lasso da calça lassa um pequenino vidro, a ultima das poções, parte do ritual mágico encetado desde a noite passada, o plano b, por assim dizer. Do frasco transparente com rótulo inelegível posicionado à porta da boca, um líquido macio deslizou-lhe amídalas a baixo. Um estremecimento repentino percorreu sua compleição oblongada. Por um momento o mundo pareceu-lhe um lugar interessante. Por ele passaram duas ou três pessoas que curiosamente o olharam, não sem reticência alguma, e até riam-se da figura estranha posta àquele banco isolado da praça, isolado em um canto, o banco, num canto oco a ecoar à infinitude. Rapidamente iniciou-se nele uma perda de consciência e, num avanço irretroativo de quente e frio, dor e prazer, culpa e perdão, tristeza e solidão, desfaleceu, então. Instalou-se o silêncio.
Só foi-lhe possível reter na fundura da retina fraca o piscar dos postes de iluminação que, já àquela hora da tarde, davam por iniciada mais uma noite perdida na cidade de casos e descasos.
Com o nascer de um outro sol tentaram, os homens da prefeitura, recolher, em vão, uma massa espessa que escorria num banco do canto da praça. Uma lama cínica e opaca que descia pelo encosto de madeira prensada, esvaia-se por entre as frestas do assento e ia inundar o jardim próximo, multiflorecido e farto de odores, que não demorou muitos dias e desapareceu, numa desertificação nunca antes vistas nos parques públicos daquela cidade.
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7 Comments:
Meu caro, começa com força total. Uma narrativa pra lá de refinada. A solidão e a tentativa de recuperar o tempo perdido é algo terrivel. O final, mais terrivel ainda, embora, penso, ainda haja esperança.Muito bom.
hábraços
claudio
Prabéns pelo novo blog, já estou linkando no meu... tudo bem?
http://dudu.oliva.blog.uol.com.br
Me fez lembrar da música do Chico Science:
Posso sair daqui pra me organizar
Posso sair daqui pra me desorganizar
Da lama ao caos, do caos a lama
Um homem roubado nunca se engana
Muito bom, Ivã! ;)
Gostei muito do seu texto. Bem escrito e com o dom de nos fazer ver a história...
Beijos deLírios, amigo!
E como já tinha lhe falado, ficou lindo seu novo espaço! :D
Dói uma dor quase real. Entretanto, tento ser da turma do amigo Cláudio (Eugenio Luz): há de haver esperança....Belo belo texto. bjs.
Blog novinho? A pergunta que não quer calar: por quê?
Texto visível. Personagem rico. Dá para imaginar vários nele. Dá para saber o que a cultura dos magros, a insensibilidade das praças, a desertificação das almas. Dá para saber...
Abraço, poeta. Bom te ler.
, que prosa poética heim meu caro? em momentos de poesia fortíssima. e cinematográfico, a medida que vou lendo, vejo a história...
, as letras lá estão pequenas mesmo...
, boa sorte com novo endereço. nova estética, linda por sinal.
|abraços meus|
Caro Ivã, desculpe a demora em retornar sua visita. Estive sem computador nesses últimos dias. Primeiro, gostaria de elogiar o seu texto, cuja leitura é tão fluente que o tempo parece não passar. E seus comentários, não conte pra ninguém: foram os mais lúcidos que jamais tive em meu blog.
Um abraço!
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